Felipe Mago e Zé da Mala. Um é trovão, o outro brisa. Mago chama as pessoas no ato, cara a cara, Zé da Mala envolve o público com a delicadeza e o encanto das palavras que pronuncia com tanta candura. Tão diferentes, trabalham juntos e falam a mesma língua: a do teatro de rua. As personalidades dos personagens parecem se confundir com as dos atores. Felipe é Felipe mesmo, 24 anos, firme na voz, olhar vibrante e muita lenha queimando dentro de si. Zé da Mala é Gabriel Bandarra, 21 anos, do tipo cavalheiro, cortês, tranqüilo no olhar e na voz . A dupla de amigos trabalha com o gênero de teatro mais antigo da história. Aliás, o teatro nasceu mesmo foi nas ruas, mas isso é outra história...
Os dois se apresentam nos ônibus (geralmente as linhas que cortam Costa Azul e Ondina), largos, bares (principalmente no Rio Vermelho), faculdades, centros de cultura, pontos turísticos e onde mais precisar de arte em Salvador e adjacências. Felipe Mago, vestido de roupa imperial (o rei da inquietude) de cor azul, que também pode ser de poeta e Zé da Mala com roupa de caixeiro viajante (metade palhaço, metade poeta) com sua mala enfeitada a tira colo, ambos com os rostos pintados de branco, percorrem todo o ambiente, seguidos pelos olhares atentos do público. Quando a cena acontece nos ônibus, só entram quando os passageiros estão sentados, prontos para aplaudirem, seguirem viagem e terem um dia mais alegre. Após o espetáculo, os artistas passam o chapéu. Afinal, é só com a arte que eles ganham dinheiro.
Gabriel Bandarra começou profissionalmente quando decidiu fazer um curso de palhaço. No teatro, o palhaço é chamado de clown, que é a tradução grega da palavra. A partir daí, nosso jovem clown sentiu mais ainda a necessidade de se expressar utilizando o teatro e tudo o que ele oferece. Seu primeiro palco foi nos ônibus, ele explica o porque, com o humor de artista: “Porque era mais fácil das pessoas me ouvirem! Tava todo mundo sentadinho lá, ia ter que ouvir!”. Já Felipe Mago define seu contato inicial com a arte com a simples frase: “Acho que a arte está dentro da gente”. A partir daí ele discorre a reflexão dizendo que todo mundo tem em si a arte plantada, está distribuída, solta, só basta exercitar. “A arte não é de ninguém”, afirma. Cada um já atuava nas ruas, sozinhos, sem parceiros. E foi nos ônibus, mostrando seus trabalhos, que os dois se encontraram e resolveram se unir. Hoje, a matéria-prima de trabalho vem do compartilhamento de idéias, da troca de impressões e do conhecimento.
"Viver de arte em Salvador é dureza"
A rua foi o lugar escolhido para atuarem, muito mais pela acessibilidade. Segundo Mago, viver de arte em Salvador é dureza e por isso é preciso optar por menores custos e maior liberdade. “A gente entrava em cartaz com uma peça, e no final ganhava 10 conto. Pra ganhar dinheiro em palco, precisa de uma boa produção, mas para quem quer usar o teatro de palco como laboratório tem que ser playboy, se não for playboy tem que ir pra rua.” Na comunicação com o público tudo é permitido. O repente, às vezes criado por eles, a poesia, a prosa, etc. A comédia é mais exercitada nos ônibus para chamar a atenção dos passageiros, além da poesia. Segundo Mago, pensar que as pessoas que estão no ônibus não entendem e não gostam de poesia é uma fraude. “Se uma pessoa fala uma verdade interessante pra você, você compra. Poesia é só o standard, na verdade o que mora na poesia são idéias podendo ser boas ou ruins”, explica.
No espetáculo desses jovens vendedores de encanto, pode-se encontrar contos de Clarice Lispector, Manoel Bandeira, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e letras de músicas de Jorge Ben e quem mais for merecedor, da maneira bem característica de cada personagem. Como definir os personagens Zé da Mala e Felipe Mago? Aí é que está. Os dois são uma mistura das artes. Sobre isso, Mago teoriza: “A gente contemporâneo, tem um leque de expressões muito grande para ser utilizado. Então, nós deixamos de ser uma coisa só. Muita coisa boa já foi feita, e a gente absorve tudo isso para fazermos nosso trabalho”.
A rua é um grande teste
O teatro de rua é produção, exibição e crítica, instantaneamente. E a dupla considera isso um desafio. Segundo Bandarra, a crítica é na hora do rodar o chapéu, no sorriso, no olhar sincero. O contato com o público é mais autêntico. Diferente dos palcos, onde o público é necessariamente seu ouvinte e expectador, sem nenhuma outra distração, na rua as pessoas não têm nenhuma “obrigação” de parar e apreciar. A rua é um grande teste. Nessa trajetória de praças e ônibus, Felipe e Gabriel já precisaram lidar com a falta de atenção e receptividade das pessoas. Confessam se sentirem entristecidos e incomodados nesses momentos, mas não desistem. É como diz Gabriel: “Isso, às vezes, acaba sendo um combustível para a gente, nos estimula.” É o que Nietzsche diz na obra “Assim falou Zaratustra”, e lembrado por Felipe: "(...) Um pequeno obstáculo é suplantado, mas imediatamente segue-se outro que também é suplantado – esse jogo de resistências e vitórias estima ao máximo o sentimento geral de potência (...)".
Para exemplificar o pensamento de Nietzsche sobre o estímulo que surge do obstáculo, Felipe conta a sua própria experiência, com suas próprias palavras: “Hoje mesmo no primeiro buzu foi uma m., no segundo eu me injuriei. Ai me bateu a vontade de intensificar mais a onda. Desse jeito você faz com o groove necessário. Você não pode fazer qualquer coisa. Se seu olho não brilhar, já era” E Gabriel completa, com mais docilidade: “Se você não estiver feliz as pessoas não vão ficar felizes.” E é essa verdade que aproxima o público de Felipe Mago e Zé da Mala. Estão juntos e verdadeiramente querem viver, e viver de arte e com arte.
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